Desnaturalizar marcadores de gênero: mais mulheres e meninas na Ciência

Desnaturalizar marcadores de gênero: mais mulheres e meninas na Ciência

* Marcadores de gênero não nascem em árvores, são construções culturais de uma sociedade.

* Este texto é dedicado à pequena Giovana que chegou a este mundo no dia 7 de fevereiro último, exatamente no momento em que finalizava esta matéria.

Rosângela Ribeiro Gil
Assessoria de Imprensa
imprensa@afdatalink.com.br

Cristina Camacho
Imagens e arte
elisabeth@afdatalink.com.br

Neste 11 de fevereiro, Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, data instituída, em 2015, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), a Datalink se junta ao esforço de conscientizar o quanto as mulheres e meninas são desqualificadas apenas por questão de gênero e como a sociedade pode, precisa e deve mudar essa realidade de discriminação e desqualificação.

A Unesco publicou, em 2022, o relatório “Uma equação desequilibrada: participação crescente de Mulheres em STEM na ALC (América Latina e Caribe)”, que faz uma extensa análise sobre a desigualdade de gênero na chamada carreiras STEM, sigla em inglês para Science, Technology, Engineering and Mathematics, em português Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática.

Segundo a pesquisa, a equidade de gênero nessas carreiras ainda tem um longo caminho a percorrer. O relatório estima que apenas uma mulher para cada quatro homens, consiga um emprego na área de STEM. As disparidades de gênero na ciência contribuem significativamente com a desigualdade econômica na sociedade.

Professora Elisangela Muncinelli Caldas Barbosa. Crédito: Acervo pessoal.

De acordo com Elisangela Muncinelli Caldas Barbosa, professora de Química para os cursos técnicos e de nível superior em Engenharia Mecânica e Engenharia de Controle e Automação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Campus Farroupilha, é importante reconhecer e refletir sobre os motivos que levam as mulheres a não escolherem as carreiras STEM e quando optam por esses cursos verificar os motivos que as fazem desistir.

No Censo da Educação Superior (2017), do Brasil, as mulheres representam a maior parte das matrículas e também das concluintes do Ensino Superior. Contudo, os cursos mais procurados pelas mulheres são das áreas de Ciências Humanas e de Saúde, na outra ponta estão os homens, nos cursos da área STEM. “Há nitidamente uma segregação horizontal onde as escolhas das carreiras estão fortemente segmentadas por gênero”, observa Barbosa. Ela acrescenta: “As carreiras em que as mulheres são maioria são aquelas menos valorizadas e que se relacionam com estereótipos de gênero, como cuidados e educação.”

Marcadores de gênero
Para a docente do IFRS, a construção de estereótipos de gênero se inicia desde a primeira infância quando, na família, se institui discursos e ações que ditam o que é adequado para meninos e meninas. “É comum que as meninas recebam bonecas, panelinhas – que remetem a utensílios e ao trabalho domésticos – e maquiagem. E os meninos são presenteados com blocos de montagem, ferramentas de construção e carros eletrônicos, por exemplo”, distingue.

É uma distinção que vai estabelecer que meninos estão propensos às atividades ligadas à tecnologia, raciocínio lógico, força e exploração do espaço físico, e meninas para as atividades que remetem a cuidados, vaidade e trabalho doméstico. “Pesquisas demonstram que essas atitudes são ameaças para o desenvolvimento das meninas e pelo seu interesse nas áreas de STEM”, alerta Barbosa.

Nesse contexto, prossegue ela, as famílias podem oferecer – mas também sabemos que as condições sociais influem nessa questão – atividades científicas informais para suas crianças, como, por exemplo, visitas a museus, leituras e filmes que explorem temáticas científicas e também deem visibilidades às mulheres, além de desconstruir o discurso de que existem brinquedos e atividades pré-definidos de meninos e meninas. Barbosa indica algumas ações que podem auxiliar nessa desconstrução, como o Meninas na Ciência, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Segregação horizontal e vertical
No campo profissional, percebe-se a concentração feminina e masculina em determinados tipos de carreira e faz com que as mulheres tenham menos oportunidades profissionais. Este fenômeno é chamado de segregação horizontal, ou segregação ocupacional. Já o termo segregação vertical descreve o domínio dos homens nos empregos de maior status, este efeito impede as mulheres de atingir níveis de igualdade de hierarquia, qualificação e remuneração.

Mesmo quando as mulheres exercem atividades mais produtivas e qualificadas, elas têm menos reconhecimento e são desencorajadas profissional e intelectualmente. Isso ocorre por causa das fortes expectativas sociais sobre o momento certo para que a mulher constitua uma família, além das decisões biológicas sobre a maternidade.

O fenômeno leaky pipeline
Numa outra perspectiva está o papel da escola. É preciso atentar, desde o Ensino Fundamental, para que a construção do currículo, o uso de metodologias e materiais didáticos e as relações interpessoais no ambiente escolar sejam isentas de qualquer tipo de discriminação. Barbosa observa: “Há que se investir na formação continuada de professores e gestores educacionais para que essas concepções sejam refletidas na sua práxis educativa e impactem positivamente, meninos e meninas, no processo de ensino aprendizagem e na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Essa concepção se estende às universidades.”

O conceito de leaky pipeline [tubulação com vazamento, em tradução livre para o português] é uma metáfora utilizada para explicar a sub-representação das mulheres nas áreas de STEM. Barbosa explica: “Nesta proposição, alunos e alunas são levados por essa tubulação do Ensino Médio à Universidade e da Universidade às carreiras STEM. Ocorre que há vazamentos na tubulação por diversos motivos: desde estudantes que mudam de ideia antes de entrar na universidade, outros que mudam de curso durante a graduação e, ainda, aqueles que desistem após terem se graduado nessas áreas. Quando analisamos o grupo dominante (aquele que chega ao final da tubulação), percebemos que ele é composto majoritariamente por homens brancos.”

Uma pesquisa [Women in the Workplace 2020: The State of Women in Corporate America] sobre os cargos ocupados na área corporativa, nas carreiras de STEM, divulgada recentemente pela consultoria McKinsey and Company, mostra que ao se percorrer a tubulação cada vez menos mulheres são encontradas. Esse efeito cumulativo resulta no desequilíbrio de gênero que temos hoje nas áreas de STEM.

A professora Barbosa ressalta que não basta que as mulheres escolham esses cursos, é preciso criar ambientes favoráveis, seja nas escolas, nas universidades ou no mundo corporativo, para que elas permaneçam e sigam nessas carreiras. “É preciso investir em abordagens que estimulem o interesse de meninas nas áreas de STEM e contemplem a diversidade para, a médio prazo, contribuir para interromper o ciclo vicioso estabelecido que acarreta a baixa participação feminina nessas áreas”, defende.

Desnaturalizar o que não é natural
É importante que a sociedade desnaturalize os papéis pré-definidos socialmente para homens e mulheres. A primeira lição é entender que nada está no plano “da natureza” quando se refere a questão de gênero. Ou seja, meninos e meninas não nascem em árvores, são construções culturais de uma sociedade.

Portanto, a atenção deve ser redobrada para perceber quando palavras e discursos carregam discriminações e diferenciações. Muito do que se percebe ou se entende como um elogio ou um cuidado com relação à mulher pode ser fruto de um marcador de gênero. Um bom começo é trocar o elogio e o pretendo cuidado pelo respeito.

Necessário que se evitem infantilizar as mulheres ou suas opiniões no ambiente de trabalho, ou mesmo tentar “traduzir” o que a profissional disse com o famoso “o que ela quis dizer foi…” ou mesmo desconsiderar o que ela apresentou para, na sequência, falar a mesma coisa.

Tornar a presença de uma mulher natural num ambiente profissional é também um desafio, ou seja, fazer notarem o trabalho ao invés de notarem que se trata de uma mulher. Para um homem, entrar e trabalhar é apenas normal, é o que se espera dele. Por isso, se você não diria a seus colegas, numa reunião, “vamos ouvir os meninos agora”, não diga “vamos ouvir as meninas agora”. Se você não diria ao entrar uma pessoa “a visão ficou mais bonita porque o fulano está aqui”, não diga “a visão ficou mais bonita porque a fulana está aqui”.

Esse enfrentamento precisa ser de toda a sociedade e em todas as relações podemos atuar como agentes modificadores deste cenário.

No núcleo familiar devemos eliminar a criação de estereótipos de gênero, excluindo a segregação de atividades adequadas para meninos e meninas. Todos devem ser estimulados a interagir com brinquedos e atividades tecnológicas. Da mesma forma, as atividades concebidas como próprias das mulheres precisam ser vistas como direito e dever de todos. Na escola e nas universidades é imprescindível criar um ambiente favorável para que estas discussões ocorram, naturalizando a participação feminina nessas áreas.

No ambiente corporativo, é preciso romper com a segregação vertical que faz com que as mulheres não atinjam os altos cargos. Uma forma de contribuir para essa mudança é dar visibilidade ao trabalho das mulheres e promovê-las a cargos mais altos, tornando a equipe mais diversa e, consequentemente, diluindo a percepção majoritariamente masculina. Isso não significa travar uma batalha de mulheres versus homens, muito pelo contrário, contribui para uma visão mais criativa, democrática e que impulsionará o desenvolvimento tecnológico e o crescimento de um negócio e de uma empresa.

Mãos à obra para descontruir os preconceitos e construir uma sociedade realmente que respeite as diferenças sem entende-las como fraquezas ou fortalezas.